Dias Cinzas
O fogo já estava quase se estinguindo, as frases ainda flutuavam em minha mente, as sombras dos móveis da minha sala não traziam a nostalgia desejada, os retratos na mesa de centro estavam com um tom chumbo, e eu mal conseguia lembrar dos rostos neles escondidos. Acendi um cigarro, e fiquei alguns segundos olhando para o teto e apreciando os desenhos formados pela sombra do lustre.
Por onde andariam as duas naquele momento, se é que estivessem com vida. Depois do ultimo ataque, era difícil acreditar que algum ser-vivo respirasse deste lado do globo. Era estranho pensar que um dia eu faria uma fogueira no meio da sala que bruna decorou com destreza.
Ele já não dava sinais de estar acordado, e aquela primeira noite já estava à pino e eu não conseguia descobrir por onde começar minha busca, já foi muito duro decidir, afinal, depois de tudo, o que aconteceu meus pensamentos não tinham um bom nível de lucidez.
Adormeci depois de alguns minutos de reflexão, deitei sob o tapete encardido pelas cinzas, usando a mochila como travesseiro, e uma das pistolas na mão.
Um feixe de luz passou pela janela agora sem vidros, e tocou meus olhos fazendo com que eu despertasse. As cinzas dançavam naquele cordão de luz que atravessava a sala. Bati a poeira da calça e vesti a jaqueta, peguei a caixa de munição no meu antigo quarto, era difícil encontrar munição para rifles de precisão.
Logo a luz do velho Sol se foi e o dia ficou nublado como eu nunca havia visto. Como se preparando para uma tormenta poderosa, mas não eram as nuvens que davam esse efeito. Depois de um instante pisquei algumas vezes, e vi o que estava fazendo aquilo, estava nevando, mas não era neve, eram flocos disformes de cinzas, como um grande incêndio recém apagado. Mas a concentração no ar era muitas vezes maior, foi difícil respirar, rasguei uma tira da camisa e a coloquei sobre o nariz e a boca.
A destruição na rua era impressionante, não havia casas demolidas e nem escombros, porém a falta de movimento, a textura do céu, e o abandono das casas dava a rua dos Buquês um ar fantasmagórico, talvez até melancólico. Os carros estacionados estavam em ruínas, era pouco provável que ainda houvesse combustível em algum deles.
Lembrei da moto que acabara de comprar, dois dias antes de sair as pressas para cumprir meu dever de cidadão. Abria porta da minha antiga garagem, e lá estava ela, boa e velha motocicleta. Era customizada, e difícil descrever, Estilo shopper, mas com design ultra-moderno, detalhes cromados, O guidão alto e o banco quase no chão. Quando sentei no banco percebi as verdadeiras dimensões. A roda traseira ficava quase na altura do meu ombro, e a dianteira, menor, quase dois metros de distancia da traseira, tinha a altura do meu joelho.
Tentei dar a partida, da terceira tentativa o motor roncou alto lançando cinzas pelos canos de escapamento.
Lembrei porque eu havia comprado aquela máquina, o som do motor me hipnotizava, fazia minha mente relaxar, inebriando qualquer pensamento. Sai da garagem sem saber para qual lado da rua virar. Parei na calçada e estudei a bússola no painel da moto. A agulha girava debilmente a procura do norte, mas sem êxito.
Preparei a mochila no bagageiro da moto e assim que ia partir a terra tremeu, via o lixo e as pequenas pedras na sarjeta se agitarem, começou leve e foi aumentando. Janelas e marquises começaram a despencar. Olhei para traz e vi minha casa balançar como se fosse feita de papel.
E então percebi algo que chamou minha atenção, a bússola da moto parou de girar sem rumo, indicou o sul, era estranho mas já era um começo, provavelmente o norte era para a esquerda, pois o equipamento indicava o sul para a direita. Logo o tremor sessou, bati forte o pedal para dar partida na moto, eu sabia que ela estava com o tanque cheio, mas não sabia como estaria as estradas e rodovias.
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